Parece que falta sempre qualquer coisa, diz Joana. Falta aquela camisa lisa de cor azul no nosso atelier das vestimentas que nos cobrem, falta aquele perfume que inundaria Lisboa e arredores com o nosso cheiro, falta aquele "modelito" de sapatos para calcorrear as ruas que assim pareceriam menos compridas. Falta sempre alguma coisa na conta bancária e falta tempo para fazer tudo aquilo que achamos que nos iria preencher ou tornar pessoas mais ricas de bem-estar e de felicidade. No fundo, e voltemos ao início, falta sempre qualquer coisa, a caminhada da satisfação é ávida, muito gulosa e ingrata. Ou talvez o saco não tenha fundo, talvez não acariciemos o que temos, talvez nos desapaixonemos rápido de mais, talvez contemplemos de menos e pensemos no que vem a seguir de mais. A insatisfação pode não ter limites e dói e faz doer porque ficamos negligentes com aquilo que é realmente importante em busca do elixir que desenfreadamente querememos tornar nosso, achando que com aquilo sim... E depois os tesouros que temos que manter, que cuidar religiosamente, ficam para atrás esquecidos e desamparados, sem mimo, no baú do sotão. A palavra que nos sossega, o abraço que nos securiza, o ombro que se oferece sem o pedirmos, o colo fofo que não se encontra em loja alguma, o afecto que nos alimenta sem apresentar conta, a companhia que nos aquece, a presença que nos ilumina, o prazer de ter alguém com quem partilhar o que é nosso, o prazer de ter alguém que connosco caminha. Isto sim é algo que só os loucos deixam faltar às suas vidas, e nós não somos loucos pois não?
Joana habita uma casa que é sua e ao mesmo tempo de todos, falamos de uma residência geriátrica. É moradora recente, conheço-a há duas semanas. Não vê, perdeu a visão há alguns anos, o seu corpo veste-se com roupas escuras, e o seu coração também. Joana perdeu o marido há cerca de dois meses, o seu rosto é triste e revestido de lágrimas que teimam em ficar. Procurei que as minhas palavras lhe estancassem, por momentos, as feridas, mas as palavras valem o que valem e as lágrimas vencem. E percebo. Respondeu-me que agora não tem vontade de viver, que o marido a completava, que viviam um para o outro. Percebo que a um puzzle ao qual falta uma peça, é um puzzle que tem que ser arrumado na estante dos objectos perdidos, é sempre um puzzle incompleto. E perder alguém que nos completa, é ficar amputado. Perder alguém que nos faz falta deve ser realmente atroz, realmente triste. Parece reinar o vazio, parece que a nossa existência jamais poderá fazer sentido outra vez. Porque essa pessoa não está, porque essa pessoa não nos ouve, não nos toca e abraça, deixamos de ouvir a sua voz, deixamos de a sentir. Imagino como deve ser difícil ter que continuar a trabalhar, a produzir, a existir, a viver... Procurei dizer a Joana que vale a pena viver por si e por ele, que essa pessoa já não existe fisicamente mas que mora em si, nas suas memórias e recordações e que só ela, Joana, lhe pode dar vida. Tentei explicar que é adequado o que sente, que a tristeza, o desânimo, a não vontade de nada e de desaparecer é a primeira fase do luto, que falar sobre as coisas e o passar do temo ajudam. Disse-me, - obrigada pelas suas palavras mas não chegam para apagar o que estou a sentir. Sei disso Joana, mas estou aqui para ouvir falar desta grande parte de si que partiu e acredito que o companheiro tempo vai serenar a sua perda de sentido e espero que consiga fazê-lo, por si. Aguardamos por si Joana.